26/02 - Memorial

Eu sou a filha caçula de quatro irmãos da família Cardoso. Nasci na cidade satélite do Gama - Distrito Federal, no ano de 1978. Hoje tenho 32 anos, sou casada com Alex Ander há 8 anos e tenho um lindo rapaz de quase 4 anos chamado Samuel. Sempre estudei em escola pública, me formei em Pedagogia na UnB em 2002. Estou trabalhando na Secretaria de Educação há 14 anos e me considero uma amante da profissão de educadora.
Antes de falar do meu caso de amor com a Educação Infantil, gostaria de falar um pouco mais sobre minha história de vida. Nasci na cidade satélite do Gama - Distrito Federal, no ano de 1978. Sempre fui cercada de muitos cuidados. Minha mãe teve uma gravidez difícil e por ter sofrido hemorragia após o parto. Nasci pequena e até a idade de 15 anos fui muito magra e sempre estava doente. Não tenho lembranças da época em que morei no gama. Sei que minha mãe conta das travessuras que meus irmãos e eu aprontávamos, como comer banana verde, espiar minha tia namorando, imitar a “Gretting”, pular na barriga da minha irmã fingindo ser a ‘Batgirl”, com o capuz da toalha na cabeça.
Mudamos para a Ceilândia em 1981. Posso dizer que as lembranças da minha infância, da minha vida escolar, se confundem com a história dessa cidade. Como o bairro P. Sul tinha pouco tempo de existência, necessitávamos de infraestrutura, como abastecimento regular de água, asfalto, escolas, transporte e segurança. Junto com o meu desenvolvimento vivi o desenvolvimento da cidade e por isso tenho um senso de pertencimento muito grande em relação ao lugar mais nordestino do DF. Falando em nordeste, por ser filha de maranhenses, a cultura popular da região sempre fez parte da minha vida. Sendo o meu pai músico, posso dizer que a minha educação infantil no lar foi regado por muitas canções, harmonia, brinquedos cantados e confraternização. Antes mesmo de entrar na escola eu já cantava as músicas infantis, pois brincava com meus irmãos mais velhos, primos, vizinhos de escola. Meu pai fazia questão de tocar na sanfona e no piano músicas para a garotada cantar. Uma música infantil popular que me lembro muito bem é:
Eu vi uma barata na careca do vovô
Assim que ela me viu
Bateu asas e voou
Dó ré mi fá
Fá fá
Do ré do ré
Ré ré
Dó sol fá mi
Mi mi
Dó ré mi fá
Fá fá
Cantávamos assim porque todos queriam tocar ao piano essa melodia que o meu pai nos ensinara.
Esse hábito me ajudou a gostar da escola quando comecei a frequentar a turma do Pré I no ano de 1982 na escola Classe 46 do Psul. Quero dizer que fui privilegiada por iniciar a minha vida estudantil nesse período de ebulição na educação, principalmente no que tange à Educação Infantil. Como nos mostra Vilarinho:
O Ministério da Educação passa a se ocupar da educação pré-escolar, que se torna ponto de destaque no II e no III Plano Setoriais de Educação e Cultura (PSEC), que eram desdobramentos dos Planos Nacionais de Desenvolvimento, elaborados durante o governo militar, para os períodos 1975-79 e 1980-85. Além de solução para os problemas da pobreza, a educação infantil resolveria as altas taxas de reprovação no ensino de 1º grau (Vilarinho, 1987). Apud Kullmann 2000.
A questão do gosto por ouvir histórias, causos, repentes, contribuiu para o desenvolvimento da minha linguagem. Curioso notar que a minha família mantinha a o costume de fazer “rodinha de conversa” e momentos para a oração. Comíamos juntos à mesa e agradecíamos pelo alimento. Uma vez, o meu pai estava orando e disse: “Senhor, nunca deixe faltar o pão de cada dia...” Eu interrompi e acrescentei ao Pedido: “E a manteiga também”. Nessa ocasião eu tinha 5 anos e já me destacava por ser de opinião e por ser muito esperta na escola.
Como é bom me lembrar da minha vida na escola. Posso afirmar que sempre fui feliz nela, mesmo passando por situações difíceis, mas acredito que tudo serviu para me tornar uma pessoa melhor, uma profissional com referência de como ser uma pessoa que marca ao passar na vida dos meus alunos. Tudo que faço na minha profissão, de certa forma estou reproduzindo o que aprendi com os meus mestres, tanto com os de casa como os das escolas que freqüentei. E a que me refiro que aprendi? Aprendi a ser solidária, ter rotina, cantar no começo da aula ( não me esqueço do momento em que todas as turmas se reuniam no pátio para cantar, especialmente a música “Pai Abraão” que era uma verdadeira ginástica para os membros do corpo e me causava risos porque o nome do meu irmão do meio é Abraão). Das brincadeiras mais marcantes destaco uma em que usávamos pneus velhos. Brincávamos de corrida, onde levávamos o pneu empurrando com a mão. Como era muito “cibita”, a impressão que eu tinha era que o pneu era de caminhão de tão grande que era para o meu tamanho. A gente também costumava rolar no gramado da escola, onde tinha um declive e geralmente os adultos não interferiam nessa brincadeira “perigosa”. Hoje confesso que não deixaria os meus alunos repetir essa travessura, pois eram frequentes as batidas de cabeça, ferimentos na grama e encontrões com outros colegas. Essa era uma alternativa para a falta do parque. Em compensação, brincávamos de tudo que criança de verdade brinca: bola, amarelinha, estátua, corre-cutia, cadeirinha, “meu burrinho leva carga sem sentir”, elástico, pique - esconde, sem contar que na escola dançávamos todas as músicas da Xuxa, Balão Mágico, Trem da Alegria, Mara Maravilha... Vejam só, os anos 80 parecem ter sido a melhor época para se divertir e aprender coisas de criança. É verdade que a cultura de se usar a TV como babá aumentou nesse período, e o apelo comercial de produtos infantis bombou, mas ainda éramos crianças.
Todas essas boas lembranças, entre outras coisas, me influenciaram na escolha da profissão. Eu queria continuar nesse lugar encantador e disseminador de conhecimentos, facilitador da socialização, onde a cultura era dada a conhecer e se modificava. Procurei durante o meu curso Normal aproveitar tudo que me fizesse uma boa professora. O juramento que fiz no dia da colação de grau não sai da minha mente: “... Se formar homens eu conseguir, sentir-me-ei honrada.”
Com isso na cabeça, iniciei a minha carreira aos 18 anos, numa turma de Educação Infantil de 4 anos. Tudo era novo ‑ Preencher diário, coordenar, não ter recreio, não ter parque, ter de “ensinar” conceitos como alto e baixo através de exercícios mimeografados do tipo: “pinte a árvore mais alta”. Isso não fazia sentido na minha cabeça: Se na escola tinham muitas árvores, por que a gente não podia fazer comparação entre elas? Parece que seria perigoso ‑ e de fato era. Meninos grandes correndo, projeto arquitetônico falho, falta de um monitor para auxiliar com as quase 30 crianças...
No meio dos meus amigos, principalmente entre os que trabalhavam com disciplinas específicas, havia um sentimento de decepção pois, para eles, menino de prezinho só brincava. Para mim isso no fundo fazia sentido, pois perdia contato direto com os conteúdos programáticos mais “avançados”. Só mais tarde, na graduação, ao conhecer a professora Fátima Guerra e a sua paixão por essa fase da Educação, entendi que o que fazemos nos anos iniciais na Educação Infantil é primordial para o bom desenvolvimento das crianças.
Mesmo assim, sem saber direito o que estava fazendo, o meu início na carreira foi legal, apesar de ter sido uma época onde o conceito de construtivismo estava sendo mal interpretado nas escolas, tentei deixar uma boa marca nos meus lindinhos que dançaram muito as músicas das “Chiquititas” comigo e experimentaram atividades psicomotoras e teatrais, além de fazer muita bolinha de papel crepom (era moda na época).
Nos próximos anos, por questão de pontuação, só conseguia trabalhar com alunos maiores e sempre me perguntava se a dificuldade que o aluno enfrentava, principalmente na oralidade, na falta de criatividade e de raciocínio lógico, não seria fruto da metodologia adotada desde a educação Infantil de se trabalhar somente com atividades de papel, sem ligação com as necessidades reais dos alunos, com o culto à apresentação de espetáculos vazios culturalmente, a falta de parque e de atividades motoras.
Decidi tentar trabalhar com a Educação Infantil sempre que possível, para evitar que os meus alunos saíssem da educação Infantil como umas verdadeiras “lagartinhas” papadoras de folhas ‑ exercícios mecânicos e sem significado para eles.
Em 2005 trabalhei no Jardim de Infância e Escola Classe 31 do Setor “O”. Que Alegria! Fiz tantas amizades, desenvolvi tantos projetos, que não consigo falar tanto, recomendo que o leitor veja com seus próprios olhos o material produzido nesse ano pelo 1º Período, Turma “G”, Vespertino: gravamos um CD com as músicas preferidas, fizemos um desfile de moda baseado na flora brasileira, fizemos atividades de educação física, dança e jogos. Tinha a “Tia Maricota”, que contava história, produzimos o caderno histórico da criança, o caderno de imagens de livros lidos pelos pais, dramatizamos, cantamos, passeamos, tudo isso foi eternizado pelas fotos e pelo trabalho do tio Túlio, que era tio da Sarah, a minha fofuxa, que não me esqueço. O trabalho foi tão rico, que até um tema que é difícil de lidar, que é a agressividade, virou tema de um poema que fiz especialmente para eles: “Suas mãos”.
Considero-me mais madura profissionalmente nessa época. Fiz tudo isso com o auxílio das famílias, que considero minhas parceiras.
Em 2009, voltei a trabalhar com uma turma de 5 anos. Era reduzida por causa do aluno Daniel, que tinha um diagnóstico de TGD (Transtorno Global do Desenvolvimento). Foi muito difícil, mas no final posso dizer que foi a maior conquista da minha carreira. Desenvolvi muitos projetos, mas a falta de condições adequadas me fez pensar na viabilidade da inclusão. Acredito que esse seja o caminho certo a seguir, mas ainda temos de avançar em muitos aspectos. O trabalho foi tão bom, que a direção da escola me convidou para assumir a coordenação no ano de 2010. Confesso que não é fácil mudar práticas tão arraigadas, mas plantamos algumas sementes. O “Projeto Maritaca”, desenvolvido pela Secretaria de Educação, me ajudou a ganhar espaço nas coordenações e propor estudos sobre os temas: Planejamento, Rotina, Trabalho Diversificado e Avaliação na educação Infantil. Esses temas foram apontados no SIADE de 2009 como os mais problemáticos. Produzi um portfólio da escola em dezembro e percebi que fizemos muita coisa significativa. Nas fotos, ficam claras as expressões de felicidade dos alunos e professoras.
Felicidade! Para mim, essa é a palavra que deve ser a marca identificadora da Educação Infantil. Apesar de a teoria dialética afirmar que desenvolvimento vem com o sofrimento, acredito que mesmo o sofrimento do período da separação dos pais, a dificuldade em aceitar as regras, o aprendizado de compartilhar, produz bons frutos. Não dizem por aí que a função da Educação é formar cidadãos? Compartilho o pensamento de Oscar Wilde: “A Melhor maneira de tornar as crianças boas, é
torná-las felizes”.
Quero tornar boas as crianças com quem convivo. Boas em se expressar, em entender o mundo, em socialização, em companheirismo, em criação, em união, em amar e em ser amadas. Pois, no final das contas, são as relações que ficam na mente. Eu não me lembro de quantas vezes fiz bolinhas de papel crepom na minha turma de prezinho, mas me lembro de muitas risadas, das músicas, das brincadeiras e do cheiro de tempo bom. Essas lembranças que me visitam quando estou em casa com meus sobrinhos e com meu filho ou atuando na minha escola servem como bússola e me ajudam a constatar que sou uma educadora de crianças.